quinta-feira, 26 de março de 2020

A Liderança Desinformada [OPINIÃO]


A Liderança Desinformada


            O pronunciamento do Presidente da República do dia 24 de março de 2020, apesar das chacotas e das mensagens de repulsa geradas, foi cheio de significado. Escondida atrás de pouco mais de quatro minutos, havia muita história no conteúdo da mensagem. Nele, reparamos a falta de liderança política no País, o caos d a (des)informação, e a ideologia de um governo “desideologizado”. Se trata de uma soma perigosa para momentos de crise, no qual estamos inseridos.
            Em seguida, vou buscar expor como a falta de liderança política clara no Brasil dificulta na condução da crise proporcionada pelo coronavírus, e porque creio que o atual Presidente não se apresenta como competente para cumprir este vácuo. Gostaria de iterar que se trata de um breve artigo opinativo, baseado largamente em interpretação pessoal de notícias e informativos governamentais. Esta não é uma carta de ódio, ou um pedido de renúncia, mas sim uma pequena exposição de opinião sobre o pronunciamento em questão, com toques de análise política.
            No primeiro minuto de vídeo, há uma passagem que se lê:

Conversamos com quase todos os Secretários de Saúde dos estados para que o planejamento estratégico de enfrentamento ao vírus fosse construído”.

Desde que Jair Messias Bolsonaro assumiu a Presidência da República, a polarização nacional vista no impeachment da Dilma se aprofundou. Por “polarização”, não digo de ordem política, apenas. Não se trata de um clássico “PT contra PSDB”, mas de uma rebeldia contra a pessoa do Presidente de um lado, e de idolatria mitológica, de outro. O “acéfalo” e o “mito” são a mesma pessoa.
Mesmo que haja alguns que o sigam e estejam certos das palavras do Presidente, há outros cuja certeza é que elas não valham muita coisa. A vontade de Jair Bolsonaro não é uniformemente aceita pela população; pior, aqueles que o veem como figura neutra são a minoria. Mesmo na máquina política nacional, a exemplo da Câmara dos Deputados, também não são poupadas críticas à sua pessoa. Desde o primeiro ano de seu governo, houve resistência do maquinário político para aceitar suas medidas. Ele sempre expôs sua indignação com a própria incapacidade de governar. Seu apoio em marchas contra o Legislativo e o Judiciário, bem como alguns governadores estaduais[1] [2], é reflexo desse conflito.
A atitude do Presidente, me parece de sempre ter sido combativo, mesmo quando era deputado federal. Durante a sua eleição, não foi seu carisma ou capacidade conciliatória que trilhou o caminho de sua posse, mas por “dizer o que pensa”. Num momento em que o brasileiro buscava uma alternativa ao Partido dos Trabalhadores — ou melhor, de todo o tradicionalismo político —, Bolsonaro surgiu como a alternativa mais diferente e vociferante. Isso atraiu votos não porque seus eleitores concordavam com tudo que dizia, mas por bradar contra a política tradicional.
O problema não é que, uma vez derrotado o inimigo, o novo líder estabelecido deve, ou deveria, ser uma voz a ser seguida por todos, senão pela maioria. Ocorre que para aquele que “diz o que pensa” é incapaz de manter uma grande variedade de posições ao seu lado. A cada bravata, é um grupo de seguidores que debanda, indignados de serem traídos por alguém que nunca lhes prometeu nada além de “resolver isso aí”. Conversar com Secretários da Saúde não significa terem chegado a um acordo que ambos vão seguir.
Nos dias de hoje, quanto a estratégias de enfrentamento da epidemia do coronavírus, o Governo Federal também não mostra muita capacidade de coordenação. Mesmo tendo conversado com Secretários de Saúde de “quase todos” os estados, essa ação não parece ter mostrado êxito. Seja pela falta de diretrizes claras a serem adotas, seja por alguns dos lados terem mudado de ideia, a vontade de Bolsonaro não consegue se concretizar no plano estadual. A falta de coordenação entre o Palácio do Planalto e o estados é latente desde o dia 17 de março, quando o Presidente criticou a ação de governadores por decretarem fechamento de espaços públicos. A sua crítica não foi ouvida mesmo no Distrito Federal, onde a quarentena deve seguir até o dia 5 de abril[3].

 O que tínhamos que conter naquele momento era o pânico, a histeria e, ao mesmo tempo, traçar a estratégia para salvar vidas e evitar o desemprego em massa. Assim fizemos, quase contra tudo e contra todos. Grande parte dos meios de comunicação foram na contramão (...)”.

Ainda que a falta de uma liderança nacional seja um problema anterior à epidemia do coronavírus no Brasil, foi por ele acentuada. Isso, porque em tempos de fácil e rápido acesso à informação, falta uma versão oficial que possa guiar os anseios públicos.
Não estou tratando informação por “verdade”, este um termo que tenho certa aversão. Se trata, em vez disso, de fluxo de ideias que são absorvidas e interpretadas por indivíduos. Informações podem ser falsas (intencionalmente ou não), podem ser especulativas, descritivas ou prescritivas. Elas podem ter base científica, base espiritual, base filosófica, etc. Apesar de serem diferentes, algumas não são tão facilmente distinguíveis. Muitas vezes podemos nos ver lendo um texto científico sem fontes confiáveis; textos filosóficos nos prescrevendo como agir, ao descrever alguma faceta da moral humana; textos espirituais disfarçados de científicos; etc. Pode ser, também, que estejamos lendo algum texto científico embasado em dados, mas deixar a nossa desconfiança se incumbir de tirar todo seu crédito.
Ademais, mesmo quando não estamos diante uma de informações enviesadas ou contraditórias como as expostas acima, podemos muito bem nos deparar com uma miríade de posicionamentos antagônicos. Acerca de um tema, é bem possível que haja divergências, e todas elas serem embasadas. Há dilemas e debates verdadeiros sobre, por exemplo, qual é a taxa de mortalidade do coronavírus; qual a eficiência do uso de máscaras para não-infectados; ou se isolamento social é uma estratégia viável frente a seus efeitos colaterais na economia. Em casos como esses não há bem uma resposta “mais certa” ou “mais verdadeira”: torna-se uma questão de decidir acreditar naquilo que faça mais sentido.
Porém, na era da informação, precisamente por a termos em excesso, não se nota a falta de um tipo específico: a informação oficial. Quero significar com isso a fonte que as lideranças utilizam para informar os cidadãos de diretrizes, regras, posicionamentos, etc. A falta de liderança enseja falta de uma fonte oficial de informações para onde pessoas possam olhar buscando o sentido que desejam. Do contrário, a cada um cabe tirar suas próprias conclusões e tomar atitudes de forma isolada. E assim, é isso que estamos presenciando: Num mesmo país, até num mesmo estado, é possível ver tanto pessoas se isolando da própria família, quanto pessoas andando normalmente pelas ruas. Os governos estaduais não estão unificados nem entre si, nem com o governo central.
Apesar do que o pronunciamento nos leva a acreditar, não parece haver tal coordenação estratégica. Ainda, há dissonâncias entre as fontes oficiais de informação. Devemos acreditar nas políticas estaduais, promovidas pelos governadores? Ou é preferível que sigamos o que o Governo Federal está decretando? A mídia tradicional, então, seria um meio informacional válido, ou é apenas mais uma forma de sensacionalismo? Ademais, como poderia significar o líder de uma nação tomar atitudes “quase contra tudo e contra todos”? Ao que mesmo ele quis se referir com “tudo” e “todos”?
Acredito que a mídia não tenha o papel de vilão nessa novela. Até mesmo o vilão, as pessoas não sabem quem é. Pode ser a o Partido Comunista Chinês; pode ser o exército estadunidense; pode ser a Itália; pode ser o Bolsonaro; pode ser os governadores; ou, caso queira, o próprio vírus. A “histeria” que o Presidente quer conter, se é que é justo chamá-la assim, não foi causada pelos jornais, mas porque as pessoas têm suas convicções atacadas todos os dias por informações ambíguas, sem prospecção de alguma coordenação sensata.

O vírus chegou. Está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. (...) Devemos, sim, voltar à normalidade. (...) O que se passa no mundo vem mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima dos 60 anos, então por que fechar escolas?”

O questionamento que o Presidente fez no excerto, apesar de retórico, é um importante. Por que fechar escolas? Para o público inteirado no cenário atual, parece não fazer muito sentido, já que resposta é tão óbvia: crianças e adolescentes podem não morrer, mas transmitem. Ponto final. Ocorre que, embora seja essa a linha de raciocínio que boa parte da população tenha, Bolsonaro, aparentemente, possui outro ponto de partida. Parece que, para ele, faria mais sentido isolar o grupo de risco em vez de todos os demais, já que a maioria destes apresentaria sintomas leves. Isso estaria consoante com sua política de manter a economia ativa, dando a ele gás necessário para cobrir o déficit público que é sua missão de governo.
Sem entrar no mérito de discutir qual seria a melhor alternativa, que se escolha um ou outro, não a metade de ambos. A falta de coordenação traz o pior dos dois mundos. Versões conflitantes trazem o que nenhum dos lados quer: um isolamento que é constantemente quebrado em nome de uma economia que permanecerá fraca. Embora não se possa culpar Jair Bolsonaro por não tentar, ele perdeu o momento de organizar os ânimos nacionais quando governadores decidiram tomar as rédeas que a Presidência havia deixado soltas. Agora, ele está tentando impor sua versão oficial, de quebra do isolamento e fortalecimento da economia, enquanto a população dos estados afetados prefere seguir as lideranças estaduais. Talvez uma liderança central muito forte, com ferramentas muito refinadas, pudesse conseguir tal proeza. O nosso Presidente, não.
            Por fim, não é de se estranhar que o atual governo no Brasil adote esse tipo de postura. O “complexo de vira-lata”[4] desenvolvido durante o governo Bolsonaro passou a tomar como modelo políticas internacionais e nacionais estadunidenses, aparentemente sem qualquer contrapartida. Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos, também possui política semelhante em seu país, sobre o coronavírus. Ele quer relaxar o isolamento[5], política que Bolsonaro está tentando também promover por aqui.
Apesar de todos os posicionamentos polêmicos em cenário internacional em prol de Trump (saída da cláusula da OMC de nação subdesenvolvida; não exigir visto para turistas americanos sem contrapartida; mudança do tradicional posicionamento brasileiro acerca do embargo em Cuba), nenhum deles chegou a ser tão perigoso para a vida dos brasileiros quanto essa. Quando a suposta liderança nacional se posiciona a favor de sua ideologia e contra o entendimento geral da população, essa deve ser a maior definição de dependência. Consequentemente, a imagem de Bolsonaro está sendo arrasada, até mesmo para eleitores que apoiavam inadvertidamente seu governo.

No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta (...), nada sentiria ou seria, quando muito acometido de uma ‘gripezinha’ ou ‘resfriadinho’, como disse aquele conhecido médico daquela conhecida televisão”.

            A diferença do que estou fazendo aqui, de expor a minha opinião pessoal sobre o cenário que estamos, e das declarações públicas de Jair Bolsonaro, parece que é apenas uma: ele é o Presidente da República. Expor sua opinião pessoal, suas ideias, sua visão de mundo não é um problema numa democracia, mas não para os representantes dela. Ele parece não levar isso em consideração — até hoje, pode não ter caído a ficha, para ele, de que está no maior cargo do país.
Sobre isso, acredito ser sintomático o egocentrismo de Bolsonaro — isso é, a percepção de que o mundo gira ao redor de si. Repetidas vezes ele criticou a imprensa por ficar em seu pé, como se ele e sua família estivessem sendo perseguidos de alguma forma[6]. Ele recebe críticas pelo que diz, assim como outros presidentes sofreram. Como o professor Limongi disse, parece que o Presidente “não entendeu que é preciso partilhar o poder pra governar”[7]. Agora, se não parece haver qualquer sentido trazer o “histórico de atleta” do Presidente para um cenário de calamidade pública, é porque não há. É o epítome do egocentrismo e da balbúrdia
            Por falar em balbúrdia, que se leve em consideração que o médico em questão se trata de Drauzio Varella. Ele havia dito, na época, em janeiro deste ano, que o coronavírus não apresentava grandes riscos à população global. No entanto, Drauzio revisitou seu posicionamento e não mais o defende, hoje aconselhando, em vez disso, cautela de população. Ao referenciar esse vídeo, Jair Bolsonaro acabou por fazer uso de informações descontextualizadas e desatualizadas a favor de seu argumento pessoal. Isso, após denunciar que estava sofrendo de um ataque informacional de um vídeo antigo e descontextualizado[8].
Por fim, me parece que aquele que ocupa a posição de Presidente da República, apesar de ser um líder de jure, não é um líder de facto nessa conjuntura. Ele se mostrou incapaz de articular projetos; não promove o consenso, preferindo sua opinião própria; dissemina informações falsas; e diverge na forma de lidar com a crise que se prostra à nossa frente. Em momentos de crise, precisamos de um líder para guiar mentes confusas, dando um pouco de conforto em situações de incerteza. Contudo, dessa vez, parece ele não vai conseguir “resolver isso aí”.




[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-15/bolsonaro-rompe-isolamento-e-endossa-atos-contra-congresso-em-meio-a-crise-do-coronavirus.html
[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/21/opinion/1558451534_123473.html
[3] https://jornaldebrasilia.com.br/cidades/coronavirus-ibaneis-endurece-restricoes-de-quarentena-atividades-suspensas-ate-5-de-abril/
[4] https://www.cartacapital.com.br/opiniao/o-infame-complexo-de-vira-lata-nunca-foi-inteiramente-ultrapassado/
[5] https://www.nytimes.com/2020/03/17/opinion/coronavirus-1918-spanish-flu.html
[6] https://oglobo.globo.com/brasil/ataque-de-bolsonaro-imprensa-reacao-humana-injustica-que-ele-se-sente-passando-diz-ministro-1-24151804
[7] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/sem-acordo-com-os-partidos-bolsonaro-nao-vai-governar-afirma-cientista-politico.shtml
[8] Bolsonaro disse em uma live em uma rede social que estavam circulando um vídeo dele chamando pelas manifestações pró-governo de 15 de março. Ele denunciou que o vídeo era antigo, e estavam aproveitando a descontextualização para ferir sua imagem.
https://www.boatos.org/politica/video-bolsonaro-convocando-para-manifestacoes-15-de-marco-2015.html