A
Liderança Desinformada
O pronunciamento do Presidente da
República do dia 24 de março de 2020, apesar das chacotas e das mensagens de
repulsa geradas, foi cheio de significado. Escondida atrás de pouco mais de
quatro minutos, havia muita história no conteúdo da mensagem. Nele, reparamos a
falta de liderança política no País, o caos d a (des)informação, e a ideologia
de um governo “desideologizado”. Se trata de uma soma perigosa para momentos de
crise, no qual estamos inseridos.
Em seguida, vou buscar expor como a
falta de liderança política clara no Brasil dificulta na condução da crise
proporcionada pelo coronavírus, e porque creio que o atual Presidente não se apresenta
como competente para cumprir este vácuo. Gostaria de iterar que se trata de um
breve artigo opinativo, baseado largamente em interpretação pessoal de notícias
e informativos governamentais. Esta não é uma carta de ódio, ou um pedido de
renúncia, mas sim uma pequena exposição de opinião sobre o pronunciamento em
questão, com toques de análise política.
No primeiro minuto de vídeo, há uma
passagem que se lê:
“Conversamos
com quase todos os Secretários de Saúde dos estados para que o planejamento estratégico
de enfrentamento ao vírus fosse construído”.
Desde
que Jair Messias Bolsonaro assumiu a Presidência da República, a polarização
nacional vista no impeachment da Dilma se aprofundou. Por “polarização”,
não digo de ordem política, apenas. Não se trata de um clássico “PT contra
PSDB”, mas de uma rebeldia contra a pessoa do Presidente de um lado, e de
idolatria mitológica, de outro. O “acéfalo” e o “mito” são a mesma pessoa.
Mesmo
que haja alguns que o sigam e estejam certos das palavras do Presidente, há
outros cuja certeza é que elas não valham muita coisa. A vontade de Jair
Bolsonaro não é uniformemente aceita pela população; pior, aqueles que o veem
como figura neutra são a minoria. Mesmo na máquina política nacional, a exemplo
da Câmara dos Deputados, também não são poupadas críticas à sua pessoa. Desde o
primeiro ano de seu governo, houve resistência do maquinário político para
aceitar suas medidas. Ele sempre expôs sua indignação com a própria
incapacidade de governar. Seu apoio em marchas contra o Legislativo e o
Judiciário, bem como alguns governadores estaduais[1] [2], é reflexo desse conflito.
A
atitude do Presidente, me parece de sempre ter sido combativo, mesmo quando era
deputado federal. Durante a sua eleição, não foi seu carisma ou capacidade
conciliatória que trilhou o caminho de sua posse, mas por “dizer o que pensa”.
Num momento em que o brasileiro buscava uma alternativa ao Partido dos Trabalhadores
— ou melhor, de todo o tradicionalismo político —, Bolsonaro surgiu como a
alternativa mais diferente e vociferante. Isso atraiu votos não porque seus
eleitores concordavam com tudo que dizia, mas por bradar contra a política
tradicional.
O
problema não é que, uma vez derrotado o inimigo, o novo líder estabelecido
deve, ou deveria, ser uma voz a ser seguida por todos, senão pela maioria.
Ocorre que para aquele que “diz o que pensa” é incapaz de manter uma grande
variedade de posições ao seu lado. A cada bravata, é um grupo de seguidores que
debanda, indignados de serem traídos por alguém que nunca lhes prometeu nada
além de “resolver isso aí”. Conversar com Secretários da Saúde não significa terem
chegado a um acordo que ambos vão seguir.
Nos
dias de hoje, quanto a estratégias de enfrentamento da epidemia do coronavírus,
o Governo Federal também não mostra muita capacidade de coordenação. Mesmo
tendo conversado com Secretários de Saúde de “quase todos” os estados, essa
ação não parece ter mostrado êxito. Seja pela falta de diretrizes claras a
serem adotas, seja por alguns dos lados terem mudado de ideia, a vontade de
Bolsonaro não consegue se concretizar no plano estadual. A falta de coordenação
entre o Palácio do Planalto e o estados é latente desde o dia 17 de março,
quando o Presidente criticou a ação de governadores por decretarem fechamento
de espaços públicos. A sua crítica não foi ouvida mesmo no Distrito Federal,
onde a quarentena deve seguir até o dia 5 de abril[3].
“O que tínhamos que conter naquele momento
era o pânico, a histeria e, ao mesmo tempo, traçar a estratégia para salvar
vidas e evitar o desemprego em massa. Assim fizemos, quase contra tudo e contra
todos. Grande parte dos meios de comunicação foram na contramão (...)”.
Ainda
que a falta de uma liderança nacional seja um problema anterior à epidemia do
coronavírus no Brasil, foi por ele acentuada. Isso, porque em tempos de fácil e
rápido acesso à informação, falta uma versão oficial que possa guiar os anseios
públicos.
Não
estou tratando informação por “verdade”, este um termo que tenho certa aversão.
Se trata, em vez disso, de fluxo de ideias que são absorvidas e interpretadas
por indivíduos. Informações podem ser falsas (intencionalmente ou não), podem
ser especulativas, descritivas ou prescritivas. Elas podem ter base científica,
base espiritual, base filosófica, etc. Apesar de serem diferentes, algumas não
são tão facilmente distinguíveis. Muitas vezes podemos nos ver lendo um texto
científico sem fontes confiáveis; textos filosóficos nos prescrevendo como
agir, ao descrever alguma faceta da moral humana; textos espirituais
disfarçados de científicos; etc. Pode ser, também, que estejamos lendo algum
texto científico embasado em dados, mas deixar a nossa desconfiança se incumbir
de tirar todo seu crédito.
Ademais,
mesmo quando não estamos diante uma de informações enviesadas ou contraditórias
como as expostas acima, podemos muito bem nos deparar com uma miríade de
posicionamentos antagônicos. Acerca de um tema, é bem possível que haja
divergências, e todas elas serem embasadas. Há dilemas e debates verdadeiros
sobre, por exemplo, qual é a taxa de mortalidade do coronavírus; qual a
eficiência do uso de máscaras para não-infectados; ou se isolamento social é
uma estratégia viável frente a seus efeitos colaterais na economia. Em casos
como esses não há bem uma resposta “mais certa” ou “mais verdadeira”: torna-se
uma questão de decidir acreditar naquilo que faça mais sentido.
Porém,
na era da informação, precisamente por a termos em excesso, não se nota a falta
de um tipo específico: a informação oficial. Quero significar com isso a fonte
que as lideranças utilizam para informar os cidadãos de diretrizes, regras,
posicionamentos, etc. A falta de liderança enseja falta de uma fonte oficial de
informações para onde pessoas possam olhar buscando o sentido que desejam. Do
contrário, a cada um cabe tirar suas próprias conclusões e tomar atitudes de
forma isolada. E assim, é isso que estamos presenciando: Num mesmo país, até
num mesmo estado, é possível ver tanto pessoas se isolando da própria família, quanto
pessoas andando normalmente pelas ruas. Os governos estaduais não estão
unificados nem entre si, nem com o governo central.
Apesar
do que o pronunciamento nos leva a acreditar, não parece haver tal coordenação
estratégica. Ainda, há dissonâncias entre as fontes oficiais de informação.
Devemos acreditar nas políticas estaduais, promovidas pelos governadores? Ou é
preferível que sigamos o que o Governo Federal está decretando? A mídia
tradicional, então, seria um meio informacional válido, ou é apenas mais uma
forma de sensacionalismo? Ademais, como poderia significar o líder de uma nação
tomar atitudes “quase contra tudo e contra todos”? Ao que mesmo ele quis se
referir com “tudo” e “todos”?
Acredito
que a mídia não tenha o papel de vilão nessa novela. Até mesmo o vilão, as
pessoas não sabem quem é. Pode ser a o Partido Comunista Chinês; pode ser o
exército estadunidense; pode ser a Itália; pode ser o Bolsonaro; pode ser os
governadores; ou, caso queira, o próprio vírus. A “histeria” que o Presidente
quer conter, se é que é justo chamá-la assim, não foi causada pelos jornais,
mas porque as pessoas têm suas convicções atacadas todos os dias por
informações ambíguas, sem prospecção de alguma coordenação sensata.
“O vírus chegou. Está sendo enfrentado
por nós e brevemente passará. (...) Devemos, sim, voltar à normalidade. (...) O
que se passa no mundo vem mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima
dos 60 anos, então por que fechar escolas?”
O
questionamento que o Presidente fez no excerto, apesar de retórico, é um
importante. Por que fechar escolas? Para o público inteirado no cenário atual,
parece não fazer muito sentido, já que resposta é tão óbvia: crianças e
adolescentes podem não morrer, mas transmitem. Ponto final. Ocorre que, embora seja
essa a linha de raciocínio que boa parte da população tenha, Bolsonaro,
aparentemente, possui outro ponto de partida. Parece que, para ele, faria mais
sentido isolar o grupo de risco em vez de todos os demais, já que a maioria
destes apresentaria sintomas leves. Isso estaria consoante com sua política de
manter a economia ativa, dando a ele gás necessário para cobrir o déficit
público que é sua missão de governo.
Sem
entrar no mérito de discutir qual seria a melhor alternativa, que se escolha um
ou outro, não a metade de ambos. A falta de coordenação traz o pior dos dois
mundos. Versões conflitantes trazem o que nenhum dos lados quer: um isolamento
que é constantemente quebrado em nome de uma economia que permanecerá fraca.
Embora não se possa culpar Jair Bolsonaro por não tentar, ele perdeu o momento de
organizar os ânimos nacionais quando governadores decidiram tomar as rédeas que
a Presidência havia deixado soltas. Agora, ele está tentando impor sua versão
oficial, de quebra do isolamento e fortalecimento da economia, enquanto a
população dos estados afetados prefere seguir as lideranças estaduais. Talvez
uma liderança central muito forte, com ferramentas muito refinadas, pudesse
conseguir tal proeza. O nosso Presidente, não.
Por fim, não é de se estranhar que o
atual governo no Brasil adote esse tipo de postura. O “complexo de vira-lata”[4] desenvolvido durante o
governo Bolsonaro passou a tomar como modelo políticas internacionais e
nacionais estadunidenses, aparentemente sem qualquer contrapartida. Donald
Trump, atual presidente dos Estados Unidos, também possui política semelhante
em seu país, sobre o coronavírus. Ele quer relaxar o isolamento[5], política que Bolsonaro
está tentando também promover por aqui.
Apesar
de todos os posicionamentos polêmicos em cenário internacional em prol de Trump
(saída da cláusula da OMC de nação subdesenvolvida; não exigir visto para
turistas americanos sem contrapartida; mudança do tradicional posicionamento
brasileiro acerca do embargo em Cuba), nenhum deles chegou a ser tão perigoso para
a vida dos brasileiros quanto essa. Quando a suposta liderança nacional se
posiciona a favor de sua ideologia e contra o entendimento geral da população, essa
deve ser a maior definição de dependência. Consequentemente, a imagem de
Bolsonaro está sendo arrasada, até mesmo para eleitores que apoiavam
inadvertidamente seu governo.
“No
meu caso particular, pelo meu histórico de atleta (...), nada sentiria ou
seria, quando muito acometido de uma ‘gripezinha’ ou ‘resfriadinho’, como disse
aquele conhecido médico daquela conhecida televisão”.
A diferença do que estou fazendo
aqui, de expor a minha opinião pessoal sobre o cenário que estamos, e das
declarações públicas de Jair Bolsonaro, parece que é apenas uma: ele é o
Presidente da República. Expor sua opinião pessoal, suas ideias, sua visão de
mundo não é um problema numa democracia, mas não para os representantes dela. Ele
parece não levar isso em consideração — até hoje, pode não ter caído a ficha, para
ele, de que está no maior cargo do país.
Sobre
isso, acredito ser sintomático o egocentrismo de Bolsonaro — isso é, a
percepção de que o mundo gira ao redor de si. Repetidas vezes ele criticou a
imprensa por ficar em seu pé, como se ele e sua família estivessem sendo
perseguidos de alguma forma[6]. Ele recebe críticas pelo
que diz, assim como outros presidentes sofreram. Como o professor Limongi
disse, parece que o Presidente “não entendeu que é preciso partilhar o poder
pra governar”[7].
Agora, se não parece haver qualquer sentido trazer o “histórico de atleta” do
Presidente para um cenário de calamidade pública, é porque não há. É o epítome
do egocentrismo e da balbúrdia
Por falar em balbúrdia, que se leve
em consideração que o médico em questão se trata de Drauzio Varella. Ele havia
dito, na época, em janeiro deste ano, que o coronavírus não apresentava grandes
riscos à população global. No entanto, Drauzio revisitou seu posicionamento e
não mais o defende, hoje aconselhando, em vez disso, cautela de população. Ao
referenciar esse vídeo, Jair Bolsonaro acabou por fazer uso de informações
descontextualizadas e desatualizadas a favor de seu argumento pessoal. Isso,
após denunciar que estava sofrendo de um ataque informacional de um vídeo
antigo e descontextualizado[8].
Por
fim, me parece que aquele que ocupa a posição de Presidente da República,
apesar de ser um líder de jure, não é um líder de facto nessa
conjuntura. Ele se mostrou incapaz de articular projetos; não promove o
consenso, preferindo sua opinião própria; dissemina informações falsas; e
diverge na forma de lidar com a crise que se prostra à nossa frente. Em
momentos de crise, precisamos de um líder para guiar mentes confusas, dando um
pouco de conforto em situações de incerteza. Contudo, dessa vez, parece ele não
vai conseguir “resolver isso aí”.
[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-15/bolsonaro-rompe-isolamento-e-endossa-atos-contra-congresso-em-meio-a-crise-do-coronavirus.html
[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/21/opinion/1558451534_123473.html
[3] https://jornaldebrasilia.com.br/cidades/coronavirus-ibaneis-endurece-restricoes-de-quarentena-atividades-suspensas-ate-5-de-abril/
[4] https://www.cartacapital.com.br/opiniao/o-infame-complexo-de-vira-lata-nunca-foi-inteiramente-ultrapassado/
[5] https://www.nytimes.com/2020/03/17/opinion/coronavirus-1918-spanish-flu.html
[6] https://oglobo.globo.com/brasil/ataque-de-bolsonaro-imprensa-reacao-humana-injustica-que-ele-se-sente-passando-diz-ministro-1-24151804
[7] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/sem-acordo-com-os-partidos-bolsonaro-nao-vai-governar-afirma-cientista-politico.shtml
[8]
Bolsonaro disse em uma live em uma rede social que estavam circulando um
vídeo dele chamando pelas manifestações pró-governo de 15 de março. Ele
denunciou que o vídeo era antigo, e estavam aproveitando a descontextualização
para ferir sua imagem.
https://www.boatos.org/politica/video-bolsonaro-convocando-para-manifestacoes-15-de-marco-2015.html